segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Ao pretenso amor

Esta carta é para ti, ingrato.

Na minha estrada tortuosa, a tua presença é desejada com a mais intensa infantilidade e repudiada com as mais frívolas desculpas. Sendo quem tu és, torpe delírio de minh'alma pagã, te expulso ao menor sinal de intimidade, como ao cão inoportuno que lambe-me o dedo podre.

Minha fria carne foi outrora aconchego do teu instinto parasita. Hoje, imploro tua repulsa desesperadamente, fingindo não crer-te companheiro e confidente, jurando pragas que me corroem para além do álcool que me suicida cotidianamente.

Dito isto, afasta-te deste pedaço de carne putrefato e indesejado, que comigo não há caminho a seguir. Comigo as noites são de entorpecentes sorrisos falsos, regados ao deleite de vinho e donzelas não tão donzelas assim.

Ao meu lado te quero uma vez mais, porque comigo é o teu lugar.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Fragmentos de Memória

Enquanto muitos só recebem homenagens póstumas, seja por culpa, medo, vergonha ou desatenção dos ainda viventes, acredito que nossas paixões devem ser declaradas ainda em vida. Eu, que por culpa, medo, vergonha e desatenção sempre me abstive de fazer qualquer declaração de amor a quem quer que fosse, ao menos no papel ainda tenho esta intenção.


Aproveitei para falar sobre meus avós, já que ainda convivo com a maioria deles, ou “três quartos” do conjunto. A maioria sim, porque bem antes de meu nascimento perdi o avô paterno e deste me escuso de falar, por agora. Não por falta de conhecimento, mas por não ter fatos pessoais a relatar – embora ele tenha sido a versão original de ser dos membros masculinos da família, desde a boemia e o gosto musical à veia humorística irremediável.


Sobre o meu avô materno, que ele escute este texto, já que não tem condições óticas de lê-lo, foi de imprescindível convivência em minha infância. Costumeiramente íamos à padaria cedinho, ele tomar café, eu tomar chá. Homem dos bares, herança genética, me levava ao colégio diariamente. Neste meio tempo, tomava uma, que ninguém é de ferro, depois ia me buscar e me deixava jogando videogame.


Foi durante muito tempo minha desculpa para ir brincar na rua, ir buscá-lo na farra. Quando o encontrava num boteco, ele puxava o neto de uns cinco anos de idade e com orgulho apontava para as placas de bares e lojas que eu prontamente lia em voz alta – o que motivava mais um brinde de cachaça com os amigos em homenagem à astúcia do neto.


Num de nossos passeios matinais de bicicleta, época em que ele ainda podia se dar esse luxo, numa bodega qualquer ele me mandou pedir algo. “Quero uma Sprite!”, eu disse (naquele tempo eu falava “splite”). O dono olhou espantado e perguntou “O que é isso?”. Ainda hoje ele repete o causo, com água na boca e com saudade: saudade da criança que sabia falar bonito e do bodegueiro que não entendia de refrigerante.


Minha avó materna desbanca, em termos de graciosidade, qualquer criança de colo. Sempre uma menina, inclusive no tamanho, batalhou pelos estudos no sonho de professora e conseguiu induzir o neto nas letras. Eu cagava (ou como ela gosta de dizer, “defecava”) com um quadro negro ao lado, rabiscando meu nome, com uns dois anos de idade, creio.


Orgulhava-se pelo neto fazer toda a lição de classe e todas as lições de toda a classe também. Guarda ainda hoje todos os uniformes escolares que usei na vida, todos mesmo. Dos clássicos da infância, ela cita sempre minha primeira frase completa, com um ano de idade, acho: “Mamãe, eu vou passearrr”, com infinitos “erres”.


Noutro momento memorável, houve um bilhetinho, eu ainda aprendendo a escrever, com os dizeres: “Odeio ter avó”; posteriormente ao qual devo ter me escondido atrás do sofá, onde ela fingia não me ouvir chorar, mas de noite segurava minha mão, pois só assim eu conseguia dormir.


Sempre condescendente com meus erros, concedia louváveis moedas para o jogo de videogame. Foi responsável pela minha primeira mesada: cinco reais mensais, que logo calculei e, capitalista, telefonei-a pedindo adiantamento e aumento de 100% (ou provavelmente a denunciaria ao sindicato dos netos desaforados).


Minha avó paterna, nunca foi de muitos mimos e carícias. Sempre aguerrida, perdeu o marido cedo e criou um punhado de filhos sozinha, passando fome e frio, sacrificando a saúde e a vida pela família, mas nunca perdendo a chance de tomar uma ouvindo seresta, bolero e bossa nova.


Quando bebê de colo, ela me deitava na barriga, numa cadeira de balanço, e conseguia me fazer dormir, apesar das cólicas. Na infância me desobrigava do fardo de derrubar o prato de almoço, o que me costumava me tomar algumas horas sentado à mesa. Ela mesma o arremessou na parede certa vez, poupando-me das broncas paternas.


Geralmente oferecia amor através da comida: seja o sanduíche do jeito que o neto gosta, o leite do jeito que o neto gosta ou o almoço do jeito que o neto gosta. Já que minha falta de afeição à comida mostrou-se inversamente proporcional à que senti pela bebida, passou a farrear comigo, comendo tira-gosto ao som de Nelson Gonçalves e adjacências, relembrando felicidades e infelicidades de uma vida tão boa e tão sofrida.


Assim, cada qual com seus pequenos detalhes, fizeram desaguar no quase-adulto de hoje as lágrimas agradecidas pelos ensinamentos à criança introvertida que está quase aprendendo a ser gente. Para a multidão alheia, aos ilustres anônimos mundo afora, meus avós nunca foram ninguém. Mas para mim, nunca houve nem nunca haverá ninguém como eles.