terça-feira, 14 de outubro de 2008

Sem Sentido(s)

Meu caro amigo,

Tudo em cima? Eu estou bem. Não como você, infelizmente; nunca como você.


É com muito prazer que te escrevo, pois que nossa amizade vem lá de trás, dos tempos que éramos pequeninos. A distância cresceu, nós crescemos; tudo cresceu, inclusive a amizade. A cada pincelada que dou no papel, você vai sentir teu dedo no meio, tantas são as aventuras.

O fato é que ando meio cabisbaixo ultimamente. É meio brochante minha vida, sempre sem muita agitação. Não como você, que andou pelo litoral há uns tempos, tomando um solzinho nas costas – e como bem sei, sempre se queimando, sem proteção justo quando o sol caminha mais forte no horizonte.

Vou te contar o real motivo desta carta, sem mais rodeios, sem comer pelas beiras; você sabe que não sou de muita prosa, que não sou muito bom glosador.

A verdade é que enquanto você estava viajando peguei tua mulher na cama com outra. Foi interessante, sabe. Tanto tua mulher quanto a outra eram muito boas. Tudo era apenas uma brincadeira que foi crescendo, crescendo... Não deu outra (quer dizer, deu sim – e como).

É triste, mas eu não me queixo. Que seriam dos amigos se não se contasse a verdade, nua e crua? O cru é exatamente o que nos torna tão suscetíveis a suportar este peso nos ombros.

Sem mais delongas, um grande abraço por trás,
Do teu amigo de sempre e para sempre amigo.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A dor e o dono da dor

Durante toda uma existência, subsistia-lhe perversamente o mesmo sofrimento. Eram dores dilacerantes, que rasgavam-lhe a carne tal qual o estuprador à sua vítima corrompe o ventre.


As chagas doíam-lhe profundamente. Impediam-no de realizar feitos atléticos, de praticar atividades intensas, demasiadamente caras à sua saúde frágil. Por quase tudo o que não podia realizar, como que para apaziguar sua própria incompetência, praguejava inutilmente, com certo desdém, um sem fim de impropérios contra o próprio corpo. Corpo hospedeiro de uma infinidade de moléstias; corpo inóspito para um coração arredio.


Merecidamente o nomearam com o pseudônimo de “profundissimamente hipocondríaco”. Não o era, mas a melancolia caía-lhe bem. De fato, exagerava aqueles sentidos. Expurgava tão intensamente aquela angústia que o pretenso temor de que lhe sobreviesse uma possível sensação de dor, já lhe era bastante dolorido.


Não conheceu o amor. Acreditava que as tais dores não o permitiam amar e travestia a mortalha do penitente celibatário. As aflições lhe eram mais intensas que qualquer paixão, mais ardentes que qualquer meretriz, mais puras e deleitáveis que qualquer donzela. O bastardo tinha uma alma tão podre que nenhuma luz vermelha, em pleno funcionamento, o aceitaria de bom grado.


Tantas vidas passam pelo mundo e ele acabou passando despercebido pela vida. Vida descartável, voltada para uma pesarosa auto-flagelação da qual se utilizava para rogar pela piedade alheia, carente de afeto que sempre foi.


Por fim, resolveu consultar um médico. O diagnóstico: unha encravada.


P.S.: Baseado numa vida vivida.