terça-feira, 13 de abril de 2010

Corpo a Corpo

Era uma vez um corpo.
O corpo percebeu a presença de um outro corpo. Logo, o desejou.
Era um outro corpo deveras desejável, confesso, embora de índole duvidosa – como o são geralmente tais corpos intratantes.
Receoso de envolver-se noutro corpo que não seu, resguardou-se ao seu platonismo na solidão do banheiro imundo, com seus pensamentos imundos.
O desejável, ciente de sua adjetivação, tratou de ludibriar o receoso o quanto pôde, por mero gozo em ser algoz e fazer agonizar o corpo alheio.
O receoso, um mirrado coitado, procrastinou o quanto pôde seu intento, no intuito de desestimular tão intenso estímulo.
Caíram porém em tentação, reincidindo em pecaminoso hábito orgástico.
E viveram felizes para sempre por mais alguns segundos.

domingo, 21 de março de 2010

À Pequena

Queria te proteger disso tudo. Imortalizar esse sorriso impagável diante de toda essa vidinha intragável. Livrar-te de todo o mal, sem um desnecessário amém, apenas amando-te. Dizer que serás sempre pequena. Minha pequena. E que serás linda para todo o sempre e que algum outro no mundo irá amar-te para todo o sempre. Te contarei estas tantas inverdades até que não tenha mais forças para tanto. Então, minha pequena não será mais pequena, nem será apenas minha. Trará a dor desprezível dos comuns e o sorriso amarelo cheio de dentes e dúvidas e anseios e amores. Eu então já não terei tantos dentes, anseios ou amores. Serei apenas teu velho cansado, tomarei minha última dose e tu me colocarás para dormir. E contarás aos teus pequenos que foste também apenas uma pequena. A minha.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O Estranho

Tempos atrás, tinha apagado o texto abaixo. Mas sinto que posso publicá-lo agora, da mesma forma a que veio ao mundo. =)

***

O bar não tinha mais o mesmo aspecto decadente e imundo que ele sempre admirou. Recebia hóspedes inusitados, um tanto ilustres, outro tanto esnobes. Os adversários de copo já não eram à altura, não mais havia reciprocidade de brindes e a árdua batalha pela embriaguez já não importava.

Era uma alma estranha aquela, atormentada por uma consciência. É, simples assim, uma consciência e pronto. Nem todos têm consciência e nem todas as consciências atormentam, ora.

Sofria um mal não tão incomum, que podemos chamar, digamos, de “melancolia crônica sem causa aparente”. Ou outro nome qualquer que pelo exagero ortográfico possa suprimir a inexistência de sintomas e tratamentos.

Tenho pena dele, mas não deixarei que saiba. É exatamente o que ele quer: que sintam remorso pela sua aparência repugnante. Nojo, talvez. Acho que ele gostaria de um pouco disso, mesmo sabendo que “asco” é uma palavra mais bonita e que ele se encanta com palavras bonitas.

Não que fosse tudo desinteressante. Ele que não era interessante. E não, não demorou toda uma vida para perceber isso – apenas para constatar.