segunda-feira, 27 de abril de 2009

Doce Lar

Acabo de chegar em casa e encontro a maior algazarra. Boa bebida, boa música, boa companhia. Uma coleção de garrafas acompanha a coletividade de degustadores, sempre entusiasmados em esvaziar mais uma garrafa.

Velho e novo sentam na mesma mesa, dama e vagabundo comem da mesma comida, professor a aluno bebem da mesma bebida. O cantor de chuveiro se junta ao tocador caseiro – não o de banheiro, por favor.

Aqui meu amigo se faz dono: pega a bebida e vem pra minha mesa como se estivesse na sua própria casa; canta e chora naquela velha canção comigo, como se fosse sua canção; repete aos presentes a minha piada como se fosse sua piada.

Em minha casa ele se embriaga comigo e vomita versos amigos em sincronia ao tira-gosto mal digerido. Acabo repetindo o gesto, por pura amizade. É meu amigo e na minha casa ele faz como bem entender, afinal, com ele estou sempre em dívida.

Minha casa é a casa dos ébrios desesperados, da malandragem praticada por uma escória indecente, dos órfãos de uma saudosa boemia moralmente questionável.

Na minha casa funciona um bar. O meu bar é a casa do Brito.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Arca Universal

Parece brincadeira de mau gosto mas não é. Talvez seja então brincadeira de mau gosto da minha parte rir de tamanhã pilhéria (ou pilhagem) realizada por um certo executivo.

Em seu blog, o citado empreendedor utiliza-se da prerrogativa dos "gastos exorbitantes" de manutenção de seu portal para realizar uma campanha cujo objetivo é continuar (não ampliar, porque aí falta verba) a saga dos sites vinculados ao portal e à sua empresa igreja. Gastos estes devidamente publicados pelo digno senhor, para que não fiquem por aí falando em transparência financeira, ora essa!

"- Hospedagem de Servidores
- Salário dos Funcionários
- Serviço de Imagens
- Luz/Água/Telefone + Gastos Administrativos
Em um Total de Custos de: R$ 107.622,00"

Conclui o doutrinador com a inspirada frase: "Se o Espírito Santo lhe tocar para nos ajudar a carregar essa responsabilidade, então faça sua doação da seguinte forma:

Bradesco
Agência: ----
C/C: ----

Banco do Brasil
Agência: ----
C/C: ----"

Me tocar? Varei-te! Quer dizer, não varei-te não! Quero dizer... Perdão Senhor, mas devo pedir perdão a qual senhor? O tal executivo?

Fica minha sugestão de jovem empreendedor: Envie uma corrente aos seus amigos (ou correligionários) pedindo o envio de R$ 1 à sua conta em nome das criancinhas com AIDS na África. Quem sabe com a arrecadação você consiga até abrir uma igreja. Ou uma empresa. Sim, dizem as más línguas que ainda são coisas distintas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Prisão Perpétua (Jardim dos Animais)

Caros amigos, eu fui passear, sem mais o que fazer. Tive pena do que vi.

Voltemo-nos ao local de visita. Os animaizinhos estavam lá, como era de se esperar. Em exibição, entretendo os transeuntes e eles mesmos também transitando de lado a outro sem rumo algum, sem sequer ciência de poderem rumar a qualquer lugar; não achando sentido algum em suas vidas nem supondo que uma vida deva ter algum sentido. De dar pena.

Não era passeio de se esperar grandes surpresas. Todos os tantos animais que eu supunha estavam presentes: o macaquinho tentando chamar atenção com palhaçadas, o elefante tentando parecer intelectual, a coruja tentando parecer enigmática, a onça pintada tentando parecer mais pintada que as outras, o cavalo tentando não parecer tão burro quanto o burro...

Estavam confinados aos muros da ignorância em que viviam, onde deveriam aparentar domesticados, dóceis, belos e asseados, tal qual lhes era imposto. Se alimentando das pequenas porções de ilusão que lhes eram servidas para que não se rebelassem contra o sistema carcerário vigente, nem se apercebessem da pequenez a que se obrigavam cotidianamente. Uma pena mesmo.

Por fim, tive pena de mim mesmo, meus amigos.
Juro que nunca mais visito um shopping center.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Ciências Contábeis

Escrevo para contar que não conto nada, só finjo contar que conto. Nem sou bom de contas nem de contos e sempre me faço crer que um a mais é sempre mais que um a menos, desde que o a mais faça esquecer o de menos e todo o resto, ou que ao menos alivie tudo que há de mais.


O menos um não conta saldo e o mais um fica mais em conta na dívida. São sempre contas erradas e o conto sai errado, porque contar mais um é mera contagem de corpos no meu cardápio obituário.


Sigo contando involuntariamente as contas de uma vida de incontáveis contos que não serão depois contados, porque não valem nem o contador, nem o contista, nem quem os conte. E não me satisfaz nem um pouco aludir à contagem e suas diversas conotações, pois que não sou calculista nem letrista e só conto por contar.


Por hora, pago a conta e saio contando as horas pro próximo algarismo por vir.

domingo, 12 de abril de 2009

Bilhete

"Era de se esperar essa carcaça estúpida, malandra, grosseira, insensível, imoral.
Sou hoje aquilo que me envergonho de um dia querer ter sido."

Achado no (lixo) meu quarto. Sem data e sem contexto, mas de conteúdo e concordância com a realidade.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

"Como um desejo de eu viver sem me notar"


Tá vendo essa vergonha, seu moço? É por ter que pedir e ter sempre negado. Tá vendo esse rosto sujo, essa roupa maltrapilha? É coisa do descaso de quem não cria caso com qualquer coisa. Tá vendo essas mãos calejadas? É de não achar trabalho aceitável, mas conseguir achar lixo comestível.


E o moço, com vergonha da origem nobre e da falta de nobreza de caráter; com vergonha do pesar de lágrimas contidas e apesar de saber-se afortunado; com vergonha das mãos delicadas que nunca trabalharam e das mãos que escreveriam o que o outro não seria capaz de ler, ficou ali parado diante daquele velho.


Velho olhar cansado. Olhar de fome e medo, misturado à apatia da rotina que o consumia, do habitual asco dos limpos e apressados que por lá passavam, de lá olhavam e lá mesmo rejeitavam.


O moço cedeu-lhe umas poucas moedas que trazia consigo, nada mais. Recebeu um agradecimento padrão, nada mais.


E o sinal abriu.

E a vida prosseguiu.

E as noites de insônia se intensificaram.