quarta-feira, 30 de abril de 2014

O dia em que a hashtag mudou o mundo

Não nasceu em manjedoura e não ressuscitou no terceiro dia, não ditou mandamentos sagrados, não atingiu o nirvana ou sequer guiou seu povo à terra prometida. Contudo, não se sabe muito bem se filha de Graham Bell ou obra do engenheiro para preencher a lacuna numa sequência de 12 botões do telefone, aquelas curtas quatro linhas retas entrecruzadas nunca antes na história da humanidade tiveram tanta utilidade, ao unir desiguais dentro da mesma inutilidade.

Em geral, dura mais que um orgasmo e menos que uma manchete de jornal. O nome dela é "hashtag" e parece atingir uma unanimidade pública que os líderes anteriores não conquistaram. Do macaco ao veado, do que não merece ser estuprado ao que é representado por um deputado midiático qualquer, do "kkk" ao "rsrs", do que vai à rua ao que só senta o bumbum na cadeira do computador, há no mundo uma variedade de pitaqueiros com opiniões radicalmente divergentes, unidos sob um só símbolo, debatendo assuntos que prometem evoluir o mundo via um criacionismo frasal invencionista que beira a futilidade.

A cada dia, um zilhão (minha pobre matemática básica me educou que esse é o número máximo existente ("culpa do Governo do PT! É esse o Brasil que quer sediar a copa?", dirão)) de #ativistasdebumbumnacadeira debatem suas ideias sedentárias nestes novos modelos de fóruns digitais, congressos virtuais que abrigam solitários baluartes e mártires intelectuais das causas sociais. Estes são, para aqueles, os espaços apropriados para "sem sair só sofá, deixar a Ferrari pra trás" - apenas para concluir a sequência de rimas.

A bola da vez é o animalzinho. Como diria o poeta Marcelo Rossi, eles sobem na linha do tempo dos ativistas, sempre de dois em dois. Com os rótulos #somostodos, os humanos debatem se os macacos ou veados têm o pior ou melhor preconceito, de cor da pele e ou de orientação sexual. Quero aqui registrar apenas um deprimente comentário que, neste caso específico, o #somostodosveados provavelmente perderá em número de publicações, pois nossa amável educação brasileira deixou em aberto o acordo ortográfico oficioso que determina a diferença entre o "veado" e o "viado".

Se o fanatismo religioso é excludente, o fanatismo "hashtagueiro" (?) é inclusivo ao extremo. E a desunião faz sua força. Todos os diversos pontos de vista sob uma só bandeira. Digam o que quiserem, mas usem a mesma frase, para que o tópico não saia da pauta. Ao #ativistadebumbumnacadeira pouco importa se Martin Luther King Jr. morreu porque sonhou o fim da segregação racial, se Maria da Penha em sua cadeira de rodas luta contra a violência doméstica, se Milk conquistou direitos homossexuais com malabarismos políticos. Ele só quer tornar pública sua opinião de como tornar o mundo um lugar melhor, de uma maneira que, se possível, não precise mover o bumbum para tanto. 

Mas hashtags não mudam o mundo. E cada qual no seu canto, em cada canto uma dor, depois que a hashtag passar...

sexta-feira, 7 de março de 2014

Eu também

Ela contou que nunca ouviu um 'eu te amo'.

Até aí, nada anormal. Há tantos que o falam por falta do que dizer, outros tantos que omitem por economia no que sentir, que talvez não haja tantos amantes e amores.

Nunca ouviu o que tanto queria e nunca soube que amou ou era amada. É claro que, assim como para uns basta sentir, para outros há resposta nas palavras - e para alguns poucos, nos sussurros e gemidos.

Tentava explicar que não entendia o que havia de errado com ela ou o que fazia de errado com eles.
De tudo tentara e nada ouvira em troca.

Um dia entrou na loja.
Comprou um aparelho para surdez.
Gritou ao vendedor: eu te amo!
Ele simplesmente respondeu: eu também.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A raposa e as uvas

É como se faz com as uvas.

Você escolhe comer a partir daquela com a casca mais formosa até chegar à que aparenta ter a embalagem menos ruim. E antes que algum purista ressalte que uva chupa-se, destaco entretanto que o bom mesmo é comer até não querer mais - se for possível não querer. 

Na curva ascendente daqueles frutos seletos, as primeiras uvas, que estavam mais verdes e caíam tão bem no paladar, já vão aos poucos sendo substituídas pelas mais maduras. Estas, um tanto machucadas em algumas partes, mostram-se mais apetitosas que as anteriores, de sabor mais apurado ou adequado ao que demandam as papilas gustativas. 

E o glutão, antes esfomeado, alimenta-se mais e melhor. 

Importa-se menos com os pequenos machucados, marcas do sofrimento pelo qual a uva submeteu-se até chegar à sua boca e que eram até mesmo causa fútil para descartar uma fruta inteira ou não comê-la de todo, tornam-se motivo para devorá-la por completo, provando dos mais variados sabores e das melhores sementes. 

Quer então que aquela uva seja o cardápio do dia todo dia. 
Até colher a próxima safra.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Fran.co

Nunca antes na história do mundo se soube tanto sobre o que todos pensam, fazem, dizem. Deve ser por isso que desprezamos cada vez mais uns aos outros, seja mostrando quem somos ou aquilo que propagandeamos.

E quem outrora tinha por ensinamento que a boa educação recomendava ser mais interessante comer calado que falar de boca cheia, agora sente uma ânsia incontrolável por publicizar o alimento, seja boa ou má (mal) comida.

E quem antes apenas sorria amarelo para uma singular foto de família que seria exposta no único quadro de entrada da mais humilde residência, agora ri para o espelho umas tantas caras caricatas até que alguma imagem "reflita" o mais sincero sorriso da mais falsa felicidade que se possa demonstrar.

E esta felicidade mede-se em números curtos, idos e inteiros. E a beleza mede-se em mantra da mais galanteadora das mentiras. E a estupidez mede-se em um jogo com excesso de velhas.

E acontece que o ébrio à moda antiga, injuriado pela beleza que vem da tristeza de mais ninguém, da feiura fundamental de pernas estúpidas - porém, coxa - e do riso frouxo 'frechado' por olhar que não mente, perde-se caduco em cofre que não se pode fechar com as marcas de seu tempo, seguindo de alma aflita sob as dobras do blusão de mais alguém.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

As dores do mundo

Dolores sempre foi mulher de vida amargurada. Não por dádiva do cartório, sofria no plural. Modéstia à parte, nisto tinha um dom inato, amadurecido ao longo de anos que não lhe renderam maturidade. Representava às lágrimas o que houvesse a lamentar, nem que para tanto fosse necessário muito imaginar.

Sozinha, pegou a lembrar momentos que julgava felizes. Algumas recordações do único amor afloravam. Era tão delicado, inclusive na cama. No sofá, na cozinha, na varanda, no elevador... Transcorrera tudo muito bem, intenso, quente e úmido.

Mas de tanto chover no molhado, o amado começou a passar horas na piscina. Com os dedos enrugados, fingia-se velho. Ela chegava a achar graça do piadista fracassado. Dali a pouco ele não precisava mais piscina nem fingir, precisava de horas. Sumia de casa aos poucos, até que escafedeu-se com aquele apaixonante professor de natação. A última notícia que teve foi de que falecera vítima de ataque cardíaco. Amou todo aquele que morre do coração, refletiu.

Dolores nunca foi mulher de fazer justiça. Naquele momento, arrebatou-lha uma súbita sensação há muito esquecida e aproveitou para prestar uma derradeira homenagem solitária àquele. Cessados os espasmos musculares, 'empilulizou-se' com tudo quanto havia no armário de remédios.

Recostada à parede ao pé do chuveiro, na qual tantas vezes disfarçara lágrimas, quedou sonolenta. Algumas horas depois, ainda sozinha, mas com uma baita dor nas costas, acordou a tempo de ver a teledramaturgia. Sentiu pena da mocinha. Era de dar dó a vida daquela coitada, que respirava em função do amor por um homem que a abandonara. Chorou. Nada mais havia a fazer antes de dormir e recomeçar um novo dia, com novas agruras a lastimar.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Empreendedor à moda antiga

E foi assim que tudo sempre foi. Chegavam com sorriso sorrateiro e desonesto lhe roubando o riso largo e sincero. A produção industrial, antes em larga escala e de lucros otimizáveis, foi dando lugar à recessão profunda. Adquiria quinquilharias superfaturadas no escambo desvalorizado. Não achou mais quem lho assegurasse o bem por vezes surrupiado.

Mudou de ramo, mantendo-se no mercado. Mais valia agora seu trabalho artesanal. Qualificando mão de obra, diminuiu a oferta, alimentando a demanda por encomenda, vislumbrando poucos riscos ao empreendimento. Falhou, não por demérito ou inépcia, mas porque seu serviço prestado foi desvalorizado ante os tantos furtos sofridos.

Não mais confiava na segurança pública oferecida. Andava a suspeitar que jocosamente espreitavam-no para um novo golpe aplicar. Ora pensou contratar a iniciativa privada, ora pensou ir à justiça, com as próprias mãos não o poderia fazer. Pois que nada fez e reiteradas vezes reincidiram sobre o coitado em ato furtivo.

Paupérrimo, sem o que dele ‘inda se pudesse aproveitar, entalhou à porta do estabelecimento vazio, aos próximos que ali adentrassem: Aqui deste mercante amante moribundo, só peço que de agora em diante leves apenas um souvenir por vez, em vez de o estoque inteiro. E que se vá.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Corpo a Corpo

Era uma vez um corpo.
O corpo percebeu a presença de um outro corpo. Logo, o desejou.
Era um outro corpo deveras desejável, confesso, embora de índole duvidosa – como o são geralmente tais corpos intratantes.
Receoso de envolver-se noutro corpo que não seu, resguardou-se ao seu platonismo na solidão do banheiro imundo, com seus pensamentos imundos.
O desejável, ciente de sua adjetivação, tratou de ludibriar o receoso o quanto pôde, por mero gozo em ser algoz e fazer agonizar o corpo alheio.
O receoso, um mirrado coitado, procrastinou o quanto pôde seu intento, no intuito de desestimular tão intenso estímulo.
Caíram porém em tentação, reincidindo em pecaminoso hábito orgástico.
E viveram felizes para sempre por mais alguns segundos.

domingo, 21 de março de 2010

À Pequena

Queria te proteger disso tudo. Imortalizar esse sorriso impagável diante de toda essa vidinha intragável. Livrar-te de todo o mal, sem um desnecessário amém, apenas amando-te. Dizer que serás sempre pequena. Minha pequena. E que serás linda para todo o sempre e que algum outro no mundo irá amar-te para todo o sempre. Te contarei estas tantas inverdades até que não tenha mais forças para tanto. Então, minha pequena não será mais pequena, nem será apenas minha. Trará a dor desprezível dos comuns e o sorriso amarelo cheio de dentes e dúvidas e anseios e amores. Eu então já não terei tantos dentes, anseios ou amores. Serei apenas teu velho cansado, tomarei minha última dose e tu me colocarás para dormir. E contarás aos teus pequenos que foste também apenas uma pequena. A minha.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O Estranho

Tempos atrás, tinha apagado o texto abaixo. Mas sinto que posso publicá-lo agora, da mesma forma a que veio ao mundo. =)

***

O bar não tinha mais o mesmo aspecto decadente e imundo que ele sempre admirou. Recebia hóspedes inusitados, um tanto ilustres, outro tanto esnobes. Os adversários de copo já não eram à altura, não mais havia reciprocidade de brindes e a árdua batalha pela embriaguez já não importava.

Era uma alma estranha aquela, atormentada por uma consciência. É, simples assim, uma consciência e pronto. Nem todos têm consciência e nem todas as consciências atormentam, ora.

Sofria um mal não tão incomum, que podemos chamar, digamos, de “melancolia crônica sem causa aparente”. Ou outro nome qualquer que pelo exagero ortográfico possa suprimir a inexistência de sintomas e tratamentos.

Tenho pena dele, mas não deixarei que saiba. É exatamente o que ele quer: que sintam remorso pela sua aparência repugnante. Nojo, talvez. Acho que ele gostaria de um pouco disso, mesmo sabendo que “asco” é uma palavra mais bonita e que ele se encanta com palavras bonitas.

Não que fosse tudo desinteressante. Ele que não era interessante. E não, não demorou toda uma vida para perceber isso – apenas para constatar.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ela

Não há corpo que lhe resista, seja velho ou jovem, seja de rabinho abanando ou olhar carente. Não há físico que lhe escape, nem física que possa explicar por que meio químico seu poder de atração se torna inevitável. Desvendá-la pode ser mistério ímpar, igualável ao por quê dos por quês nunca respondidos.


Ela aprontando das dela e eu aqui sem nada fazer, pensando e repensando o que fazer embora não haja o que se fazer. Idealizo e insisto no pensar, que por ora me apetece, mas que logo mais me entristece e me perturba o sono já escasso e maltrapilho.


De tanto pensar-te sinto conduzir-me em caminhos por vezes sinuosos, atalhos impróprios ou desvios inviáveis, que no mais apenas retardam nosso destino e nosso encontro ao fim da estrada, a ocorrer muito provavelmente em dia e hora igualmente impróprias e inviáveis.


Mas cá estou, minha cara, e contigo uma vez mais espero contar quando nosso dia chegar, que por ti estarei a esperar pois que apenas tu és certa e definitiva a me levar e fazer reencontrar os meus, já entregues aos teus cuidados eternos.