segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ela

Não há corpo que lhe resista, seja velho ou jovem, seja de rabinho abanando ou olhar carente. Não há físico que lhe escape, nem física que possa explicar por que meio químico seu poder de atração se torna inevitável. Desvendá-la pode ser mistério ímpar, igualável ao por quê dos por quês nunca respondidos.


Ela aprontando das dela e eu aqui sem nada fazer, pensando e repensando o que fazer embora não haja o que se fazer. Idealizo e insisto no pensar, que por ora me apetece, mas que logo mais me entristece e me perturba o sono já escasso e maltrapilho.


De tanto pensar-te sinto conduzir-me em caminhos por vezes sinuosos, atalhos impróprios ou desvios inviáveis, que no mais apenas retardam nosso destino e nosso encontro ao fim da estrada, a ocorrer muito provavelmente em dia e hora igualmente impróprias e inviáveis.


Mas cá estou, minha cara, e contigo uma vez mais espero contar quando nosso dia chegar, que por ti estarei a esperar pois que apenas tu és certa e definitiva a me levar e fazer reencontrar os meus, já entregues aos teus cuidados eternos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A Flor e o Espinho

Contempla o luar em luto pelo guerreiro desconsolado, abatido com a mera expectativa do desabrochar daquela ainda não conquistada. Afaga o disritmado pulsar no peito do algoz que outras tantas despetalou, outrora embriagado em êxtases vulgares e enfim rendido à opulência pecaminosa de uma flor ainda em botão. Ouve a concha a ecoar as eternas lágrimas do mar sobre a areia virgem, que do amor só conheceu os amantes por sobre ela estendidos em deleite voluptuoso na escuridão inóspita, apenas com a lua desdenhosa a lhes vigiar. Sente o aroma exalado pelo que o insensível coração teima não contar ao humilde carcereiro, que de mortalha em riste torna-se escravo do perfume inebriante. Beija por fim este corpo cansado, que te pertence mesmo quando perdido em outros corpos cansados, em outras batalhas inevitáveis, em outras flores ainda por desabrochar e despetalar...

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Prelúdio

Em inútil tentativa (a pedidos) de inspiração por um possível texto sobre o amor, bem mais improvável que estes sobre qualquer banalidade, frustro-me em perceber que do amor nada entendo e pouco do que sinto entendo e tampouco do que entendo escrevo.


Do pouco que entendo da contraparte romântica, um tanto vem da fuga, outro tanto da partida. Não a habitual fuga da realidade, por meios nem sempre lícitos. Fuga da dança instável em que sempre tropeço, piso no pé e perco o ritmo. Nem falo também de partida em se tratando deste jogo sem regra e sem juiz. Aqui a falta não compensa, nem que se recorra ao clichê do lugar melhor, bem pior pros que ficam.


Embora por vezes se traduza em ausência de lágrimas, minha dor vem da dor de outrem, da dor daquele que mais a sente e não se acovarda em demonstrá-lo, tal qual o cara na imagem borrada do espelho. Vem do egoísmo da própria partida pressuposta e imaginada, quiçá sonhada ou desejada.


O desejo... Eu entendo do desejo, puro e simples. Anseio já domesticado em dias de intermináveis batalhas contra a descontrolada gula púbere. Apesar de que ainda não entendo o asco habitual ao objeto, logo que consumido. Afinal, que mal faz usufruir do vício uma vez mais? Basta falsear o desejo, embora não tão bom fingidor quanto aquelas com quem acostumara-se a lidar, aquelas a quem batia a porta sempre que precisava ou batia a face caso fosse requisitado.


Por fim, é uma coisa mais profunda que um encontro casual ou uma transa sensual, me diz um. Ele não tem pressa, ele pode esperar em silêncio, num fundo de armário... – avisa outro. Quem dera alguma frase de efeito pudesse explicar... A alma desesperada por completude tentaria com ela dizer o que nenhum desfrute de corpos alheios pode fazer sumir.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Sem Resposta

Tu me amas? Claro que sim, mulher! Não achas que se estivesse assim tão claro eu não o precisaria perguntar? Mas que sei eu do que passa em tua cabeça? Não indagas o que sinto por ti? Não, pois tenho certeza da estima que tens por mim. Não mais te importas comigo... Como podes pensar tamanha calúnia de mim? Nem percebeste que estou grávida. Mas como, se nem ao menos o aparentas? É de um menino. Que ótima notícia! O menino tem apenas 14 anos, mas jura que sou a mulher da sua vida, que vai arranjar emprego e contar aos pais do nosso relacionamento. (Sem resposta).


***


Uma esmola, por favor? Claro, aqui está. Por que me deste a esmola? Ora, porque me pediste. E fazes tudo o que te pedem? Não, mas caridade eu faço sempre que posso. Por que o fazes? Porque me sinto bem ao ajudar o próximo. Então fazes caridade porque te sentes bem? Exato. Pois fazes caridade por egoísmo? (Sem resposta).

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Gripe Como Ela É

A mídia alavanca uma vez mais a “crise de extinção da raça humana” em nome da suposta periculosidade de uma nova gripe. E por mais que soe ridículo, o porco é o bode expiatório da vez.

Já sabemos, de acordo com as últimas tendências dos modismos gripais que nos assolaram, que frango, porco ou qualquer outro animal nada podem fazer contra a mídia que lhes impinge culpa ou o mercado que lhes exclui dos frigoríficos, sendo que os coitados não passam de carne saudável destratada e esquecida pelos consumidores ignorantes de que aqueles, na panela, não transmitem doença alguma.

Grupo de risco é a palavra de (des)ordem no vocabulário dos âncoras, mundo afora. Nele se inserem crianças, idosos, gestantes, obesos e outros tantos mais facilmente passíveis de contágio pela dita cuja. Gente outrora de nariz empinado, agora cobertos por máscaras, receosos de uma pandemia incontrolável por um sistema de saúde pública incapaz de lidar com a “crise”, mas pandemia esta que se supõe controlável por remédios absurdamente caros cedidos por uma generosa multinacional farmacêutica, a “heroína” a lucrar nisso tudo.

E o que eu posso fazer? Absolutamente nada. Lavo minhas mãos. É o que os noticiários sugerem.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Pequenos Problemas Incorrigíveis

O pequeno queria porque queria saciar-se com os doces. Os pais, que insistem vez por outra em portarem-se como tais, não os permitiam na casa, muito menos na boca do pequeno.


O pequeno resolveu aproveitar-se do descuido da empregada – essas tais que os pais pagam pra fazer as vezes de pais que não se portam como tais – que estava a lavar louças (a empregada, não o pequeno, pra quem perdeu a linha de raciocínio). Meteu-se a procurar doces casa adentro – o pequeno, não a empregada.


Achou umas balinhas azuis na gaveta do criado-mudo do papai. Achou umas balinhas brancas no armário de remédios da mamãe. Achou umas balinhas coloridas debaixo do colchão do irmãozão.


Acharam o pequeno apontando para o alto (e não era com o dedo, meus amigos), quase desacordado e em transe. Demitiram a empregada, acusada de desleixo e irresponsabilidade, porque pais não se podem demitir assim por qualquer bobagem.


As balinhas? Continuam sendo usadas pelos outros membros da família. O pequeno continua proibido, pois as balas lhe fazem mal. Dão cáries, esse tipo de coisa...

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Desprazer

Ele sentiu fome. Um apetite voraz, daqueles de retirante sertanejo em pleno êxodo num pau-de-arara. Uma fome incomum – daquelas que fazem descrer ao assistente social lecionando planejamento familiar.


Nessa insaciável necessidade de devorar o que lhe atravessasse o caminho, sua mente abrigou um pensamento febril, indiferente aos preceitos dos mais moralistas, estes tantos hipócritas idealistas que nos surgem apenas para criticar. Não era de sua índole, embora antes que pensasse, já agia com um despudor rarefeito, esganiçado, puto da vida e com a vida que tanto lhe maltratara.


Vida da qual ela mal sabia o significado, analfabeta de parteira que era. Da volúpia mundana, da luxúria pecaminosa, de tudo que poderia um dia ser prazeroso lhe foram impostas apenas as amargas dores.


Estava preenchida com todo aquele suor repugnante, exalado por criatura idem. Para sua sorte, caso se possa assim supor por falta de palavra mais adequada cabível no vocabulário deste desalmado escrevedor, o tal voluptuoso faminto, apesar de muito bem prendado, sofreu de grave inaptidão momentânea, imprescindível para a consecução de seu objetivo.


Para seu azar, uma vez mais aqui perdoado pela pobreza criativa deste que vos fala, o tal devorador saciou sua gula, ou talvez seu orgulho, com o tradicional desfecho de assassinato digno de uma tragédia teatral. Ou provavelmente digna apenas do pouco gênio inventivo do escritor.


Concluído o ato, os demais figurantes continuaram com seus afazeres, perversões e orgias. O cotidiano do cabaré não mudaria por culpa de qualquer puta morta.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Ao mestre com carinho

Querido Professor,


Soube que o senhor sabe, como poucos, a arte de dizer muito, dizendo muito pouco. Embora não dês importância a este que te importuna com tamanhos infortúnios, nem provoque os que merecem ser postos à prova, mesmo que lhes desaprove o comportamento reprovável – seja qual for teu método avaliativo para tanto – venho por meio desta carta relatar-te meu apreço por tão digníssima personalidade.


És, a meu ver, algo como um dedicado jardineiro exaustivamente capaz de podar o crescimento das inofensivas plantinhas sob teus cuidados, para que estas não te atrapalhem o caminho, mas que continuem adornando o ambiente, silentes e atentas a menor brisa que te sopra a face desgastada.


Apesar da aparência decadente e abatida, realizas teu trabalho com um ar de imenso prazer, que irrompe do exagerado apreço que tens para com tua pessoa, trazendo sempre consigo o velho sorriso amarelo no canto da boca – junto a uma teimosa saliva a escorrer com freqüência.


Não me entendas mal. Não diminuo teu esforço na árdua tarefa de educar (lecionar, ensinar, ou qualquer outro sinônimo que te convenha), embora por meios que certas vezes te entediem, beirando à sonolência. Tarefa árdua sim, visível que é no teu suor e teu odor que desagradam a alguns dos mais puritanos. Eu não... Eu creio no teu amor ao trabalho, assim como crês orgulhosamente na sinceridade que teus pupilos empenham ao te acariciar o ego e te lustrar com desdém a testa desmatada pela calvície.


Apesar de meu limitado vocabulário, a intenção foi apenas de explicar-te a estima que te tenho, querido professor. Se me delongo em elogios, culpa minha, que não me caibo nesta cadeira desconfortável durante estas horas de palavras tão reconfortantes em tua companhia. Espero com esta singela homenagem conquistar-te não o coração (que este já deve estar deveras maltratado, caso o possuas), mas alguma pouca simpatia. Não que a indiferença já não me seja mais que suficiente.


Do teu dedicado discípulo.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Explicando o Recesso

Não quero lhes falar de minha tristeza, mas o que me entristece e que não me escapa em palavras insiste em fugir por meio de sedutoras letras mal-rabiscadas.

Escrever é preciso, apesar de não explicar-te nada, meu caro. Nem sobre que merda escrevo, nem em que merda penso. Saiba de mim apenas que dias inglórios ainda hão de vir, quando serei capaz de sentir fazendo sentido.

Nada tenho a dizer que já não se saiba de mim e que esta falsa transparência traduz em sentimentos íntegros, mesmo que desonestos para com meu sagaz interlocutor, que tem de se dar por satisfeito em refletir-lhe este bon-vivant decadente e incapaz de lamuriar-se em constante auto-flagelação pública.

Escrevo porque é melhor exorcizar meus males em letras que disfarçá-los em sorrisos.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Primeiro Amor

Ela era bela. Não que meu padrão de qualidade fosse uma tal beleza incomparável, mas que para minha inocente visão apaixonada, era bela sim. Não tinha formas de musa inspiradora, mas tinha aquele necessário ar de musa ao meu olhar. Minha visão talvez estivesse turva pela paixonite infantil, mas eu me achava o Quasimodo trôpego que nunca a obteria, intocável que ela era pela timidez do contato espacial diário resumido à sala de aula.


A beleza dela estava apenas em meus olhos, o que não me foi tão óbvio assim. E que o padrão do belo esculpido ao longo dos anos pelas discriminações de amigos, sorrisos indiscretos, tapinhas nas costas e estereótipos curvilíneos me envergonha, isso é fato. Mas que ela tinha aquela aura que chamou a atenção como nenhuma outra, isso tinha.


Talvez pelo inatingível que fosse aquele amor, que eu nem sabia amor e que nem o sei ‘inda hoje, eu tremesse de paixão a qualquer sinal de proximidade. Prefiro pensar que talvez fosse porque ela tinha lindos cabelos esvoaçantes e sujos quando descia o escorregador e tinha perninhas tortas cheias de feridas de criança irrequieta e um andar de pinguim desengonçado provocado pelas perninhas tortas.


Queria ter de volta aquele apego à feiúra que a tornava bela. Queria ter de volta o amor às banalidades que fazem da mulher um ser amável. Queria não ter sofrido as mutações que os sorrisos de desaprovação me provocaram. E como eu queria poder reviver novamente aquela pequena paixão platônica pra poder dizê-la que de mim não fugisse. E pediria que ela me ensinasse como voltar a ser a criança apaixonada e apaixonável e destronasse o adulto imaturo dos falsos moralismos.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Há de chegar meu dia



Um dia serei eu a recordar os tempos áureos, a chorar qualquer saudade de uma lembrança há muito guardada.

Um dia serei eu a ingerir qualquer etílico nobre que me faça rir e chorar sem razão aparente, cercado daqueles que me amaram por toda uma vida.

Um dia serei eu a lamuriar a falta de saúde, a resmungar da comida que não apetece, a fazer uma falsa raiva a quem me cuida, apenas por travessura que a idade me vai permitir.

Um dia serei eu a querer o egoísmo de desistir, sem me permitir pensar nas vontades e necessidades alheias que tanto me aborrecem.

Um dia serei eu o que só fez o bem, o que só teve virtudes, o que vai deixar saudades eternas. Serei eu a ir-me embora e a fazer sofrer os que aqui ficarem.

Um dia serei eu o que representava tudo para alguém.
Alguém que não sabe se pode suportar o peso da vida sem aquela presença.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

À decadência II


Bela tradução do que eu poderia dizer sobre o fim dos meus vinte anos.
Completa-se ano que aqui escrevo, que aqui aprendo e expurgo os males. Completam-se, em breve, vinte e um anos que aqui estou.

Já escrevi que não gosto de aniversário. Por infelicidade, pouco mudou meu modo de pensar e repito:

"Os humanos são estranhos, têm cada costume esquisito que comemoram até mesmo a decadência da vida.

Escutar palavras de carinho regadas a tapinha no ombro e abraços emocionados (estes últimos após alguns litros vazios), depois, ser elogiado por tudo que você já construiu na vida (nada, no caso) e tudo que irá construir.

Saber que se estão esvaindo os melhores dias de sua vida, ou apenas que você está morrendo lentamente sem se dar conta de que não teve melhores dias, e festejar o acontecimento nunca me pareceu interessante.

Ah, esses humanos... Inventam cada circo...

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Doce Lar

Acabo de chegar em casa e encontro a maior algazarra. Boa bebida, boa música, boa companhia. Uma coleção de garrafas acompanha a coletividade de degustadores, sempre entusiasmados em esvaziar mais uma garrafa.

Velho e novo sentam na mesma mesa, dama e vagabundo comem da mesma comida, professor a aluno bebem da mesma bebida. O cantor de chuveiro se junta ao tocador caseiro – não o de banheiro, por favor.

Aqui meu amigo se faz dono: pega a bebida e vem pra minha mesa como se estivesse na sua própria casa; canta e chora naquela velha canção comigo, como se fosse sua canção; repete aos presentes a minha piada como se fosse sua piada.

Em minha casa ele se embriaga comigo e vomita versos amigos em sincronia ao tira-gosto mal digerido. Acabo repetindo o gesto, por pura amizade. É meu amigo e na minha casa ele faz como bem entender, afinal, com ele estou sempre em dívida.

Minha casa é a casa dos ébrios desesperados, da malandragem praticada por uma escória indecente, dos órfãos de uma saudosa boemia moralmente questionável.

Na minha casa funciona um bar. O meu bar é a casa do Brito.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Arca Universal

Parece brincadeira de mau gosto mas não é. Talvez seja então brincadeira de mau gosto da minha parte rir de tamanhã pilhéria (ou pilhagem) realizada por um certo executivo.

Em seu blog, o citado empreendedor utiliza-se da prerrogativa dos "gastos exorbitantes" de manutenção de seu portal para realizar uma campanha cujo objetivo é continuar (não ampliar, porque aí falta verba) a saga dos sites vinculados ao portal e à sua empresa igreja. Gastos estes devidamente publicados pelo digno senhor, para que não fiquem por aí falando em transparência financeira, ora essa!

"- Hospedagem de Servidores
- Salário dos Funcionários
- Serviço de Imagens
- Luz/Água/Telefone + Gastos Administrativos
Em um Total de Custos de: R$ 107.622,00"

Conclui o doutrinador com a inspirada frase: "Se o Espírito Santo lhe tocar para nos ajudar a carregar essa responsabilidade, então faça sua doação da seguinte forma:

Bradesco
Agência: ----
C/C: ----

Banco do Brasil
Agência: ----
C/C: ----"

Me tocar? Varei-te! Quer dizer, não varei-te não! Quero dizer... Perdão Senhor, mas devo pedir perdão a qual senhor? O tal executivo?

Fica minha sugestão de jovem empreendedor: Envie uma corrente aos seus amigos (ou correligionários) pedindo o envio de R$ 1 à sua conta em nome das criancinhas com AIDS na África. Quem sabe com a arrecadação você consiga até abrir uma igreja. Ou uma empresa. Sim, dizem as más línguas que ainda são coisas distintas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Prisão Perpétua (Jardim dos Animais)

Caros amigos, eu fui passear, sem mais o que fazer. Tive pena do que vi.

Voltemo-nos ao local de visita. Os animaizinhos estavam lá, como era de se esperar. Em exibição, entretendo os transeuntes e eles mesmos também transitando de lado a outro sem rumo algum, sem sequer ciência de poderem rumar a qualquer lugar; não achando sentido algum em suas vidas nem supondo que uma vida deva ter algum sentido. De dar pena.

Não era passeio de se esperar grandes surpresas. Todos os tantos animais que eu supunha estavam presentes: o macaquinho tentando chamar atenção com palhaçadas, o elefante tentando parecer intelectual, a coruja tentando parecer enigmática, a onça pintada tentando parecer mais pintada que as outras, o cavalo tentando não parecer tão burro quanto o burro...

Estavam confinados aos muros da ignorância em que viviam, onde deveriam aparentar domesticados, dóceis, belos e asseados, tal qual lhes era imposto. Se alimentando das pequenas porções de ilusão que lhes eram servidas para que não se rebelassem contra o sistema carcerário vigente, nem se apercebessem da pequenez a que se obrigavam cotidianamente. Uma pena mesmo.

Por fim, tive pena de mim mesmo, meus amigos.
Juro que nunca mais visito um shopping center.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Ciências Contábeis

Escrevo para contar que não conto nada, só finjo contar que conto. Nem sou bom de contas nem de contos e sempre me faço crer que um a mais é sempre mais que um a menos, desde que o a mais faça esquecer o de menos e todo o resto, ou que ao menos alivie tudo que há de mais.


O menos um não conta saldo e o mais um fica mais em conta na dívida. São sempre contas erradas e o conto sai errado, porque contar mais um é mera contagem de corpos no meu cardápio obituário.


Sigo contando involuntariamente as contas de uma vida de incontáveis contos que não serão depois contados, porque não valem nem o contador, nem o contista, nem quem os conte. E não me satisfaz nem um pouco aludir à contagem e suas diversas conotações, pois que não sou calculista nem letrista e só conto por contar.


Por hora, pago a conta e saio contando as horas pro próximo algarismo por vir.

domingo, 12 de abril de 2009

Bilhete

"Era de se esperar essa carcaça estúpida, malandra, grosseira, insensível, imoral.
Sou hoje aquilo que me envergonho de um dia querer ter sido."

Achado no (lixo) meu quarto. Sem data e sem contexto, mas de conteúdo e concordância com a realidade.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

"Como um desejo de eu viver sem me notar"


Tá vendo essa vergonha, seu moço? É por ter que pedir e ter sempre negado. Tá vendo esse rosto sujo, essa roupa maltrapilha? É coisa do descaso de quem não cria caso com qualquer coisa. Tá vendo essas mãos calejadas? É de não achar trabalho aceitável, mas conseguir achar lixo comestível.


E o moço, com vergonha da origem nobre e da falta de nobreza de caráter; com vergonha do pesar de lágrimas contidas e apesar de saber-se afortunado; com vergonha das mãos delicadas que nunca trabalharam e das mãos que escreveriam o que o outro não seria capaz de ler, ficou ali parado diante daquele velho.


Velho olhar cansado. Olhar de fome e medo, misturado à apatia da rotina que o consumia, do habitual asco dos limpos e apressados que por lá passavam, de lá olhavam e lá mesmo rejeitavam.


O moço cedeu-lhe umas poucas moedas que trazia consigo, nada mais. Recebeu um agradecimento padrão, nada mais.


E o sinal abriu.

E a vida prosseguiu.

E as noites de insônia se intensificaram.

sábado, 28 de março de 2009

...Eis a Questão

Não se é meramente aquilo que se vê. Não enxergamos todo esse enquadramento de 180º que diminuirá ao longo do desgaste das retinas, do desgaste da alma, que vai se tornando adulta, triste e solitária, até que aprende a olhar apenas para si mesma.

Será que me vêem como sou ou será que sou como me vêem, exatamente como não quero que vejam? Pareço ser aquilo que sou ou será que sou aquilo que pareço ser, exatamente o que não quero parecer? Nem jogo de palavras é solução, nem a solução me parece estar em palavras.

Não! Por que os outros seriam da forma como os vejo? Assim, de que serviriam os outros sentidos se somente um nos fosse suficiente?

Sei que posso ser o que sempre quis. Mas se nem sempre quis ser aquilo que sou, muito menos sei se o que quero ser será aquilo que um dia quererei.

Duas definições peculiares marcaram o modo de enxergar a mim mesmo. Palavras sinceras e frustrantes, quase humilhantes, adjetivações ofensivas, ditas oportunamente por quem me abriria os olhos. Para alguém habituado ao exercício do esquecer, palavras que souberam, ao seu jeito, ensinar.

A primeira deu-se quando ouvi ser a decepção de quem eu sempre me esforcei em orgulhar, esforço que era em geral insuficiente. Daí a descobrir que o tal clichê realmente ensina a viver custa-me quase uma década e ainda não ensinou pra quê veio de fato; mas abriu um precedente único: vasculhar meus próprios defeitos e descobrir-me, a cada passo, a cada ato.

A segunda? Daqui a uma década espero ter a resposta moldada em meu caráter.

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
[...]
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
[...]
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta."

sexta-feira, 13 de março de 2009

Indeciso? Talvez

Sempre fui uma pessoa muito decidida. Decidi desde cedo que os outros decidiriam por mim.


Decidi não tomar importantes decisões, não viver grandes aventuras, não amar intensas paixões. Houve sempre quem o fizesse por mim.


A indecisão até que me cai bem: faço planos nunca realizados, durmo sonhos nunca lembrados, choro lágrimas nunca roladas, romantizo amores nunca vividos.


Falho em tudo, peco pelo despropósito, condeno-me voluntariamente a passar pela vida e não viver.


Uma lição de vida: o mundo é um lugar triste. Tenha medo da felicidade, tal qual este que vos fala.


Essa merda parece auto-ajuda.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Homenagem ao Malandro

Eis o malandro.


Nunca soube apreciar o gracejo de um sorriso feminino e suas intenções muito bem escondidas, desvendar o falso desinteresse romântico incrustado na suavidade de um perfume ou o apelo sensual disfarçado num vestidinho decotado que dá contornos inocentes, quase angelicais, àquela tentação de salto-alto.


Qual o sentido dos flertes intermináveis se ao fim da noite os corpos tinham uma só necessidade? Desdenhava de sua falta de tato pisando, quase que sem querer, no coração alheio; tornando-se a cada contradança o diamante lapidado dos cabarés, o messias fajuto dos pagãos, o “barão da ralé” que tanto almejava na infância.


Pensou conseguir enganar a si mesmo, ser imune àquele vírus. Atordoado, talvez fosse tarde para regenerar-se, mas acreditou piamente poder tornar-se um homem honesto, um homem honrado, um homem bom, um homem...


Ah, mas olha lá quem passa! Olha as más intenções por sobre aquele salto-alto, o gracejo nas curvas debaixo do vestidinho curto, a tentação dos cabelos esvoaçando e levemente recaindo sobre o decote...


Eis que surge o malandro outra vez.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Dança da Solidão

Quanto mais ele fugia, mais ela escapava.

Como quem desvia do atalho para encontrar na reta final.


Quanto mais ele sofria, mais ela o expulsava.

Como quem mascara o sentimento para aproveitar melhor o fim.


Quanto mais ele sorria, mas ela chorava.

Como quem jura para si mesmo que dessa vez seria aquela, afinal.


Quanto mais ele fingia, mais ela imaginava.

Como quem magoa pelo prazer de saber que devia por um fim.


E ele pensa: ah, se elas fossem uma só.

E elas pensam: ah, se ele não fosse só um idiota.